Confira programações online de celebração do Dia da Visibilidade Trans

Por Cyro Morais, produtor de conteúdo  freelancer da Casa 1

Há 17 anos, o Brasil comemora no dia 29 de janeiro, o Dia da Visibilidade Trans. A data lembra o dia em que ativistas trans foram até Brasília lançar, no Congresso Nacional, a campanha “Travesti e Respeito”. Muito ainda há o que avançar nas lutas, nas conquistas. Afinal, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil foi eleito pelo 13º ano consecutivo o País que mais mata pessoas trans. O que só reforça a importância da realização de eventos e campanhas que promovam a conscientização e o respeito às pessoas trans, que, hoje, já compõem uma parcela de quase 2% da população brasileira.

Além da realização da IV Semana de Visibilidade Trans da Casa 1 que falamos completinha neste post, reunimos abaixo alguns eventos que fazem parte da programação de diversas instituições em comemoração ao Dia da Visibilidade Trans. A maior parte dos eventos acontece online para evitar os riscos de contaminação pela COVID-19. Dá só uma olhada!

Para marcar a data o Centro Cultural da Diversidade (CCD) apresentará nos dias 29,30 e 31 de janeiro, uma programação especial. No dia 29, show de Jup do Bairro, às 22h, e nos dias 30 e 31, respectivamente, apresentações especiais dos espetáculos ‘Não Ela’ (20h) e ‘Mini-bius, bils, bios’ (19h), que estão em processo de residência artística no CCD. As peças tratam de temas relacionados `a transexualidade. Todos os eventos serão transmitidos pelo instagram @ccdiversidade .

A programação da Semana da Visibilidade Trans da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Cidade de São Paulo prevê a divulgação, no dia 29, dos resultados da fase quantitativa do primeiro mapeamento Trans realizado na cidade de São Paulo. Os pesquisadores ouviram 1650 pessoas trans de diversos bairros.

Ainda na sexta-feira, no encerramento da programação, haverá o lançamento da placa de reinauguração do Centro de Referência de Defesa da Diversidade CRD, que passa da administração da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, para a SMDHC, e recebe o nome de Brunna Valin, em homenagem à ativista trans morta em 2020.

Serão promovidas lives sobre diversos aspectos da temática da transexualidade, abordando políticas públicas relacionadas a questões de enfrentamento ao preconceito e à violência, atendimento e tratamento de saúde e dificuldades de mulheres transexuais e homens trans para se inserir no mercado de trabalho. Por conta dos cuidados necessários para prevenção da Covid-19, os eventos serão todos online e transmitidos pelas redes sociais da SMDHC:

29/01, sexta-feira às 14h

Live: Dia da Visibilidade Trans

Apresentação do Resumida do Relatório da 1° Fase do Mapeamento Trans

          Abertura

          Fala da Secretária Ana Cláudia Carletto

          Fala do Vereador Eduardo Suplicy

          Apresentação do Relatório pela equipe do CEDEC

29/01, sexta-feira às 15h

Lançamento do Calendário Trans 2021

Organização: Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder

Participação do artista e jornalista Jogê Pinheiro

Instagram: @casarao_brasil

29/01, sexta-feira às 17h

Evento presencial, fechado, para marcar a transição do CRD da SMADS para a SMDHC e a inauguração da Placa com o nome CRD Brunna Valin.
Convidados: Secretária Claudia Carletto, Floriano Pesaro e Eduardo Barbosa

A SP Escola de Teatro, administrada pela Adaap (Associação dos Artistas Amigos da Praça) realiza a 9ª edição da SP TransVisão, que acontece entre os dias 29 de janeiro e 3 de fevereiro. A iniciativa celebra a diversidade e o respeito que a instituição tem com as pessoas trans. Essa é uma ação da Adaap em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa, com a Secretaria de Justiça e Cidadania e com o apoio de grupos e entidades de luta pelos direitos humanos.

Devido à pandemia de Covid-19, em 2021, o evento será digital e transmitido pelo Youtube e Facebook da SP Escola de Teatro. Neste ano, o tema do projeto é Distanciamento Social: Uma Trans realidade – A pandemia passa, o preconceito não! e ativistas, pesquisadores, intelectuais, artistas, profissionais da saúde e outras personalidades importantes na luta LGBTQIA+ marcarão presença. A programação conta com palestras, bate-papos, apresentações artísticas, espetáculos, ações sociais e homenagens.

 

Confira a programação da 9ª edição da SP TransVisão dos dias 29, 30 e 31 de janeiro e 1ª, 2 e 3 de fevereiro:

SEXTA-FEIRA, 29 de janeiro

17h – Abertura

Com Brenda Oliver, Ingrid Soares, Kimberly Luciana Dias e Marcia Dailyn. Homenagem às pessoas trans que partiram vítimas da Covid-19, com homenagem especial à Bruna Valin e Amanda Marfree.

17h – Jantar Afeto e Música

Distribuição de marmitas e kits de higiene, além de disponibilizar banheiros na sede da SP Escola para higiene. Ação realizada pela Translúdica – Loja Colaborativa Distribuição na Praça Roosevelt e Praça da Sé

17h30 – Intercâmbio TransVisão

Convidades: Renata Taylor (Belém – PA) e Raicarlos Durans (Marituba – PA) Mediação: Millena Wanzeller

19h – Mesa de discussão Transparentalidade

Convidades: Cibele Lascala, Fe Maidel, Leonardo Medeiros e Rachel Rocha Mediação: Daniel Veiga 21h- Ação artística: Espetáculo Teatral – Divas Florescer

SÁBADO, 30 de janeiro

17h – Intercâmbio TransVisão

Convidades: Regininha – Maria Regina (Rio Grande – RS) e Silvia Reis (Boa vista – RR) Mediação: Millena Wanzeller 19h – Mesa de discussão Políticas Públicas para Visibilidade Trans Convidades: Caroline Iara (Bancada Ativista), Samara Sosthenes (Quilombo Periférico) Mediação: Brenda Oliver

21h – Ação artística

Espetáculo teatral Entrevista com Phedra, de Miguel Arcanjo, com Marcia Dailyn e Raphael Garcia. Direção de Robson Catalunha e Juan Telategui Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Ingressos: Grátis ou R$ 12,50 (contribuição voluntária aos atores) Retirar ingressos na Sympla

DOMINGO, 31 de janeiro

17h – Intercâmbio TransVisão

Convidades: Sellena Ramos (Salvador – BA) Mediação: Flávia Araújo

18h – Mesa de discussão: Acolhimento

Convidades: Alberto Silva (Casa Florescer), Jaciana Batista (mãe), Regiane Abreu (Mães pela Diversidade) Mediação: Fernanda Kawani Custodio 20h – Exibição do Documentário “Limiar” de Coraci Ruiz Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Gratuito Retirar ingressos na Sympla

SEGUNDA-FEIRA, 1º de fevereiro

17h – Intercâmbio TransVisão

Convidades: Luisa Lamar (Cuiabá – MT) Mediação: Millena Wanzeller

19h – Mesa de discussão: Empregabilidade

Convidades: Daniela Andrade, Joseph Kuga, Yasmin Vitória e Raphael Pagotto Mediação: Heloísa Alves

TERÇA-FEIRA, 2 de fevereiro

17h – Intercâmbio TransVisão

Convidades: Symmy Larrat e Neon Cunha (São Bernardo do Campo – SP) Mediação: Millena Wanzeller

19h- Mesa de discussão – Experiências representativas e de empregabilidade no serviço público

Convidades: Arthur Cardoso, Cássia Azevedo e Emanoel Henrique Lunardi Ferreira. Mediação: Luiz Fernando Uchôa

21h – Ação artística

Espetáculo Teatral Genderless – Um corpo fora da Lei, com Guttervil. Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Ingressos: Grátis ou R$ 12,50 (contribuição voluntária aos atores) Retirar ingressos na Sympla

QUARTA-FEIRA, 3 de fevereiro

20h – Prêmio Claudia Wonder

Premiades: Casa Chama, Casa Florescer, Eloína dos Leopardos, Erika Hilton, Léo Paulino e Mariana Munhoz

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E tá sabendo de mais alguma programação da visibilidade trans? Manda pra gente nos comentários!

 

O que vai rolar na IV Semana de Visibilidade Trans da Casa 1

O dia 29 de janeiro marca o Dia da Visibilidade Trans. A escolha da data se deu 2004, quando, pela primeira vez, pessoas travestis e transgênero estiveram no Congresso Nacional para pressionar os parlamentares e exigir visibilidade para as demandas sociais da comunidade.

Em 2021, a Casa 1 realiza a Semana da Visibilidade Trans pelo quarto ano consecutivo, com uma programação composta exclusivamente por pessoas trans. A programação inclui transmissão online da peça “Wonder – vem pra barra pesada”, com a atriz Wallie Ruy e os pocket shows de Danna Lisboa e Alice Guél, tudo ao vivo direto do Teatro Oficina; além do lançamento da coleção literária “Traviarcado” e oficina de escrita com o dramaturgo e ator Daniel Veiga.

Todas as atividades são gratuitas.

Para fugir da realidade dos eventos que costumam ganhar destaque nessa data, cujo foco é falar sobre como é ser trans, a Casa 1 busca evidenciar as vivências e os trabalhos protagonizados por pessoas trans. A ideia é exaltar a pluralidade de artistas e profissionais trans e fugir dos estereótipos.

Neste ano a curadoria ficou por conta da atriz Renata Carvalho, que explica as escolhas da programação: “Queremos com essa edição fazer uma ode ao Traviarcado, celebrando nossa transcestralidade, pluralidade e diversidade do ser trans/travesti, reafirmando nosso senso de coletivo e comunidade”.

Cena do espetáculo “Wonder – vem pra barra pesada”

PROGRAMAÇÃO COMPLETA 29/01 (SEXTA) – DIA DA VISIBILIDADE TRANS

Lançamento da coleção “Traviarcado”, da Editora Monstra, da Casa 1.

Com textos de Sara Wagner York, Bruna Benevides (Antra) e Ian Geike.

A publicação será digital e a distribuição gratuita.

Apresentações ao vivo, direto do Teatro Oficina: 18h

Abertura. 18h10 – Pocket Show de Danna Lisboa.

Duração: 40 min.

19h – Pocket Show de Alice Guél. Duranção: 40 min.

20h – Wonder – vem pra barra pesada, com Wallie Ruy. Duração: 90 min.

22h – Encerramento.

DE 01 a 17/02 – OFICINA DE ESCRITA

01, 03 e 05/02 – Oficina de escrita com o roteirista, dramaturgo e ator Daniel Veiga.

08 e 10/02 – Projeto gráfico dos textos criados nos encontros anteriores, com a artista visual Laura Daviña, do Parquinho Gráfico.

17/02 – Finalização dos textos e do projeto gráfico.

Após os encontros, a Editora Monstra lançará uma publicação coletiva com as obras literárias criadas a partir da oficina. As inscrições e a oficina são gratuitas. Para se inscrever, basta acompanhar as redes da Casa 1, onde será publicada a chamada.

Obviamente, em razão do contexto da pandemia de coronavírus, este ano toda a programação será exclusivamente online. Para além da efeméride, artistas trans encontram espaço na programação da Casa 1 ao longo de todo o ano. Essa sempre foi uma das preocupações da organização, que é mantida exclusivamente por meio de doações da sociedade civil. “Quando lutamos por representatividade nas artes, estamos lutando por representatividade em todos os âmbitos sociais. Possibilitar ou facilitar a prática artística desses artistas é uma forma também de contribuir com nossa permanência. É importante termos espaços para ensaiar, experimentar, estudar, partilhar e exercer nosso ofício, e muitos de nós não conseguimos ter acesso a esses espaços para compartilhar nossas produções artísticas”, afirma Renata Carvalho.

Eis a melhor defesa do Gilberto do BBB, a poc mais empolgada do Brasil

Como não poderia deixar de ser, o assunto da semana está sendo a estreia da 21° edição do reality “Big Brother Brasil”. Com uma quantidade recorde de pessoas LGB: são três homens gays e duas mulheres bissexuais, todos e todas negras. Ainda que chama atenção o fato de em vinte e uma edições apenas uma participantes trans, Ariadna, na 11ª edição, ter participado, é bem interessante perceber o quanto o programa tem pautado e sendo pautado pelas lutas identitárias.

E não cabe aqui uma análise sobre a qualidade do programa, ou então apontar as (muitas) falhas identitárias e de representatividade, o que interessa  é: o programa, querendo ou não, movimenta debates sociais de forma recorrente e sistemática, e não tem porque a gente fugir disso.

Posto isso, já deu pra sentir que Gilberto já ganhou igualmente uma quantidade de fãs e haters, e olha que foram só três dias de exibição e nos chamou atenção a defesa da drag queen, youtuber, palestrante, performer e oradora Melissa L’Orange no Facebook.

Entramos em contato com a Melissa pedindo autorização para reprodução do seu texto aqui no blog da Casa 1 (ele pode ser lido também aqui direto no perfil de Melissa)

“O #BBB21 literalmente acaba de começar e muita gente já tá com raiva e de saco cheio do Gilberto. Daí eu me senti bem defensora pública pra vir aqui proteger o menino.

Que ele fala muito, pula muito, grita muito, tá muito empolgado? Sim. Isso é irritante pra quem tá assistindo? Pode ser. Mas olha só.

A guei nasceu numa família pobre nos cafundó do Judas e pensou: “Não, eu vou estudar pra vencer na vida!”.

Isso lá uns 15 anos atrás quando o Brasil era um projeto de pais, e não um rascunho de filme distópico com restrições orçamentárias.

Ainda tem o episódio de protagonizar sua própria versão de “The Book of Mórmon” por causa da nossa boa e velha homofobia institucionalizada.

Se livrou disso (mas não dá escravidão do doutorado, então mais um motivo pra tá feliz na casa), assumiu sua bicheza galopante e tá feliz da vida.

Alias….Eu sempre desconfio de quem não gosta de uma boa bisha que se libertou do preconceito e do nojo que sentia por si. Por que será?

Daí agora imagina essa homossexual intelectual que estuda ECONOMIA num governo Bolsonariano no ano de 2021 com onda anticientífica e Paulo Guedes ministro…

Essa poc conseguiu entrar no programa mais assistido e disputado do Brasil!

É claro que Gil tá feliz! ULULANTE! Uma libélula entorpecida! Ele venceu num jogo que nunca esteve a seu favor em um momento que tinha tudo pra tá se estrepando.

Vendo isso, eu vou ter bastante paciência com a Bilu, porque ela merece várias segundas chances pra mostrar a si e ganhar coisas, sabe?

Deixa ele ser FELIZ, só por enquanto.

Suas amargas do cacete.”

Agora, vamos esperar para ver o que a tal “casa mais vigiada do Brasil” vai nos mostrar do Gilberto e de todos e todas as outras participantes LGB!

“O que o mês da visibilidade trans representa para você?”

Por Cyro Moraes, produtor de conteúdo freelancer da Casa 1

Desde 2004, janeiro é o mês em que se celebra o dia da Visibilidade Trans. A efeméride lembra o dia em que travestis e transexuais foram ao Congresso Nacional reivindicar dos parlamentares políticas de equidade e lançar a campanha nacional “Travesti e Respeito”, que acabou se tornando a primeira organizada por e para pessoas trans com foco na promoção do respeito e da cidadania. Apesar da data exata ser no dia 29, o mês inteiro é marcado por ações com esse foco. O blog da Casa 1 fez a pergunta: “O que o mês da visibilidade trans representa para você?” para várias pessoas trans e não-bináries. As respostas foram diversas e colocamos todas elas aqui para você.

Maia de Paiva, atriz e performer – @maiadepaiva

Sem dúvidas pensar visibilidade para pessoas transvestigêneres é urgente! Nós sempre existimos e fomos apagades da História – basta pesquisar sobre pessoas trans em culturas tradicionais por aí – e agora exigimos que nossas existências no mundo sejam reconhecidas, protegidas e exaltadas. Ao mesmo tempo, penso que falar de visibilidade para nossos corpos é bastante contraditório, já que sempre que estamos em qualquer lugar que não seja “o esperado” somos constantemente vigiades e ameaçades. Por isso, acredito que esse é um mês de propagar e refletir sobre as nossas histórias de luta e resistência coletiva, reivindicando mais segurança para nossas vidas e mais participação com qualidade nos espaços que ocupamos e circulamos. Não desejo uma visibilidade individual, quero dignidade coletiva para todes e em qualquer mês!

Gabriel Lodi – ator e dublador – @gabriel_lodi

Todos os anos somos convidados a falar sobre visibilidade e sempre me pergunto quando será possível falar de orgulho. Percebam a diferença. Mesmo com tantas pessoas que vieram antes, ainda clamamos por visibilidade, ou seja, lutamos por existência social, já que um grupo que é invisível não consegue sair da precariedade e da vulnerabilidade.

Estamos nos unindo pra dizer que somos possíveis. Que nossos corpos e vivências carregam tantas possibilidades e potências que não aceitamos mais sermos limitados, sermos subjulgados.

Nós existimos e temos direito a um mundo possível para todos, todas e todes!

Florido Fogo – Encenador, performer y bailarino – @floridofogo

Enquanto pessoa trans não binarya, em processo de retomada étnyca e classe baixa no país da binariedade, do apagamento e da desigualdade. Vivenciar o mês da visibilidade transpassa por muites sentires e víveres. Já que a não binariedade muitas vezes é apagada e excluída pela própria comunidade T. y por consequência LGB. Já que não somos todes iguais e muitas vezes é projetado em nós expectativas cisgeneras. Ainda  que haja a busca para construyrmos uma experiência de celebração, pq eu mesme ressalto constantemente que ser trans não é sobre tristeza e dor o tempo ynteiro, mesmo no país que mais mata pessoas trans seja por assassinato, seja por apagamento, seja por suicídio, seja por falta de políticas públicas. Ainda assim nós não binaries estamos no trabalho constante de kebra e atravessares do cistema para podermos existir vives e com dignidade. Ocupando e deslocando percepções que não conseguem entender pessoas além de suas genitálias e toda uma imposição colonial, biologizante e excludente. É nessa energya que a importância do mês da visibilidade dança na minha experiência e na aproximação de experiências várias. Nesse mês é sobre lembrar, é sobre chorar, mas é sobre insystir e se fortalecer com as nossas. No meu caso é sobre buscar nas ancestraz outras narratyvaz que permitem a minha existência e sobre celebrar A Núclea de Pesquiza Tranzborde que é majoritariamente trans não binária en troca com outres recortes chamados dissidentes.

Dodi Leal – travesti educadora e pesquisadora em Artes Cênicas – @dodileal

O mês da visibilidade trans é um lembrete à cisgeneridade de sua responsabilidade de responsividade. Responder sim às pessoas transvestigêneris é aceitá-las em suas vidas o ano inteiro. Recebam. Recebam. Recebam. Amem-nos. Empreguem-nos. Andem conosco. Aprendam com nossas professoras e professores trans. Confiem nas pessoas trans. Rasguem seus peitos pois nós somos chuva de afeto e energia vital.

Maite Lopes Bessa – artista visual – @maite_lopes_bessa

Para mim, o Dia da Visibilidade Trans é uma forma de trazer para o centro da sociedade o debate sobre nossas existências, que tem sido historicamente tão marginalizadas.
É uma forma de nos legitimar enquanto pessoas e fazer com que nossos corpos ocupem espaços que sempre nos foram negados.
É uma oportunidade de nos inserir no mercado de trabalho, nas universidades, na representação política e institucional…ou seja, é uma forma de nos trazer dignidade.

Yaga Goya – performer e produtora cultural – @umabixa

Sinto que Janeiro é a oportunidade de celebrar nossas existências e de visibilizar a causa, mas que esse exercício se estenda para todos os meses.

As pessoas cisgêneras devem rever diariamente seus privilégios e se questionarem, ainda vivemos no país que mais mata e consome a população Transvestigenere.

Ágatha Íris – travaturga, atriz e compositora – @gatha_iris

Antes de pontuar a relevância da visibilidade trans e travesti pra mim, é igualmente importante ressaltar como se dá esse mês a partir do momento em que a cisgeneriedade se apossa do que é necessário ser visto sobre a nossa existência e corporiedade.

Em todas as circunstâncias e cenários se torna perceptível o lugar que ocupamos na sociedade e nesse CIS(sis)tema. A partir disso, a corporiedade transvestigênere se torna importante e essencial morte. E é exatamente aí, nesse momento circunstancial, em que ocorre a visibilidade. A corpa trans e travesti só é essencial, legitimada e mantida na exploração sexual e no óbito. É uma linha tênue entre ser merecedora de orgasmos e morta. Diante disso, quando chegamos no nosso mês da visibilidade, que pra mim, é mais do que visibilidade no tempo presente, é uma visibilidade atemporal, que me atravessa e me conecta com meus eus travestis, com a minha transcestralidade, me deparo com diversas pessoas cis (até mesmo da própria comunidade LGB) ignorando a nossa existência e/ou chamando pessoas trans e travestis para palestras, lives…. sem renumerar ou contrubuir de alguma forma, sendo que passado o mês, voltamos a estaca zero (até mesmo no próprio mês estamos). Ou seja, a cisgeneriedade nos deixa explícito que se trata sobre eles/elas como vamos continuar a sobreviver, até porque o que fazem é primeiro: o que está na “moda”; e segundo: o que gera retorno capital. Tornando assim nosses corpes sensacionalistas.

Agora, respondendo diretamente à pergunta feita, a visibilidade pra mim também se trata de criar oportunidades entre a nossa própria comunidade (como foi e ainda tem que continuar sendo). Esperar da cisgeneriedade, pra mim, é dar um tiro no próprio pé. Se é sobre a gente, tem que ser pra gente e entre a gente. É preciso se fortificar cada vez mais e enxergar possibilidades pra romper com esse etnociscentrismo. Ainda há muites manes que não aceitam se enxergar ou que não veêm expectativa (de vida, financeira, profissional, acadêmica, familiar, afetiva…) em ser trans e travesti. Por isso, é significativo que essa visibilidade alcance elus, até porque a própria mídia mata o ato de se ver. A prova disso é a novela “A FORÇA DO QUERER” (que, atualmente, está sendo reprisada na grade da TV GLOBO), que além de cometer transfake, retrata a existência trans de forma errônea e ensina as pessoas cis como verem e reagirem a gente, e a gente a como se vê. Pra mim, VISIBILIDADE TRANS E TRAVESTI também tem a ver com construir novos sinônimos e adjetivos qualificativos em ser travesti e trans. É preciso saber que podemos nos resignificar para nos inovar, é preciso saber que podemos nos autoinspirar e construir para desconstruir as falácias da nossa própria existência: TRANSVESTIGÊNERE.

Kiara Felippe – DJ, atriz e multiartista – @kiarafelippe

O Mês da Visibilidade Trans pra mim representa estar viva. Representa nossa resistência. Representa várias coisas, representa orgulho, uma luta, vitórias, coletividade. Representa muita coisa, mas quando eu penso no Dia da Visibilidade Trans, que é marcado por um dia em mês, eu penso em todo o ano, que posso estar viva. Cada dia que eu posso viver e estar visível. A visibilidade trans está em cada pessoa T. A partir do momento que a gente se torna visível, ocupa os espaços, pra mim é visibilidade também. A gente está levando esse simbolismo adiante.

Lua Lucas – atriz e professora – @lualucax

Uma oportunidade sempre perdida da cisgeneridade de se repensar e fortalecer pessoas trans e travestys!

Rudá – atriz @ ____ruda

Esse mês me lembra uma lição da transcestralidade: aquela força potente que eles tentaram eliminar ao longo dos séculos, mas que falharam diante da reinvenção desses corpos ao longo da história. Esse mês me lembra que eles continuam falhando. Que no meio do caos existe essa fagulha que eles não vão conseguir extirpar. Esse mês é um lembrete que não estamos felizes com a ficção que eles criaram, que o sistema deu errado. É nesse pensamento que me garro esse ano e nos próximos. Rezo pra que cada mês pra além desse seja um convite para a insurreição, que as portas sejam derrubadas para assim a transgeneridade passar não só para usar um banheiro, ou pra comprar tranquilamente seu pão, mas também para terem sua memória e dignidade garantidas.

Que cada esquina delas seja protegida, que os gabinetes de quem conseguiu chegar lá (democraticamente) seja livre do mau olhado, que nossos corpes diversos sejam livres dos olhares exotificantes, que cada boyceta possa andar na rua sem medo, que cada corpo não-binárie lembre de beber água e cuidar da saúde, que não nos falte uma boa terapia, seja ela hormonal ou em analista, que a bruxaria das nossas chegue aos quatro cantos deste mundo para lembrá-los que esse mesmo mundo ainda há de cair.

João Daniel – vendedor externo e artista – @eoq_daan

É um mês em que conseguimos aproveitar que milhares de olhos que desviam da gente o ano todo se voltam pra nós, é uma oportunidade de aparacer e dizer que estamos aqui!

Samira Schiorelli – profissional do sexo – @transtornada_oficial

Bom pra mim, Samira, não devemos levantar a bandeira só no mês da visibilidade. Devemos levantar todos os dias! Visibilidade não só falar sobre e, sim dar a cara a tapa por nós.

Hoje se muitos LGBTQIA+ tem ” privilégios ” é porque, na década  de 80, muitas trans, deram a cara e vida para que hoje nós tivéssemos os nossos direitos reconhecidos.  Mas mesmo com tantas vidas perdidas, a própria comunidade não reconhece isso.

Então, não é sobre “levantar  bandeira”, é sobre lutar todos os dias.  É sobre ser empático,  ter sororidade, ter amor ao próximo, é  sobre se colocar no nosso lugar todos dias.  É quando uma travesti moradora de rua te parar, perder 5 minutos do seu tempo e ouvir, é sobre dar um prato de comida. É, realmente, colocar em prática na vida real aquilo que se posta nas redes sociais. É lindo ser ativista nas redes sociais, mas quando é parado na rua, ignora. Queremos menos hipocrisia e mais empatia.

Marcel – pedagogo – @affeborges

O mês da visibilidade trans pra mim representa o mês de orgulho, mais até que a própria parada LGBT, ao mesmo tempo que simboliza que somos invisibilizados ao longo do ano.

Mas esse ano temos muito o que comemorar! Ver a Erika Hilton, como  mulher, trans, preta mais votada, ver as/os candidatas e candidatos trans que foram eleitos… Isso tudo é o que me faz acreditar na possibilidade da minha existência.

Rafa Ella Brittes, estudante de ciência política, assessora parlamentar, transfeminista decolonial – @sereiasubversa

O mês da visibilidade trans me soa de várias maneiras. É uma oportunidade de lembrar a população da nossa existência e de como sobrevivemos. É mais uma data na esteira da cultura ocidental de criar datas comemorativas em um compromisso de aprofundar o que se comemora. É uma gambiarra de reconhecimento que me ajuda a não desistir de seguir lutando pela total conquista da cidadania e além dela. Me soa um tanto sorrateiro, um tanto nebuloso, colorido demais. Me soa um hackeamento, um feitiço, uma tecnologia macumbeira. Me soa grito.

Prestação de contas Casa 1 – 2020 e 2021

Entre o 2020 e o começo de 2021, a gente mudou um pouquinho o formato da nossa prestação de contas e fizemos pequenos vídeos para as redes sociais, contando um pouco sobreos nossos processos mensais e como o dinheiro doado para a Casa 1 foi usado nesse tempo.

Vamos lá?

NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2020

SETEMBRO E OUTUBRO DE 2020

AGOSTO DE 2020

JULHO DE 2020

JUNHO DE 2020

15 séries além de Veneno para celebrar a semana da Visibilidade Trans

A minissérie “Veneno” baseada no livro “Not a Whore, Not a Saint: The Memories of La Veneno”, conta a história de Cristina Ortiz, uma das primeiras transexuais famosas na Espanha. Cristina foi cantora, atriz, profissional do sexo, e ficou eternizada pelo pseudônimo “La Veneno”.

Na série acompanhamos seu processo de transição, seus grandes momentos na tevê, performances e polêmicas, porém o vínculo de Veneno com a jovem estudante de jornalismo Valeria Vegas é o ponto principal da trama. O seriado não tenta suavizar a dura realidade da vida dessas mulheres, mostrando o que o sofrimento, a falta de oportunidades e a marginalização causam em suas vidas.

Com atrizes trans representando todas as fases da vida de Cristina, a série deixa sua marca na indústria do entretenimento mas, não é a única produção a dar reconhecimento a artistas trans. Listamos a seguir produções nacionais e internacionais que também contribuíram para mudar esse cenário de descaso e marginalidade.

Daniela Santiago em Veneno

Daniela começou sua carreira como dançarina e modelo, seu primeiro trabalho como atriz foi na minissérie “Veneno”. Além de Daniela, Jedet e Isabel Torres interpretam as diferentes fases da vida de Cristina.

Dominique Jackson em POSE

A série fez história colocando no elenco principal cinco atrizes trans e tendo na sua produção a escritora e mulher transexual Janet Mock. Inspirada no documentário “Paris Is Burning”, a série mostra os bailes de vogue dos anos 1980. Elektra, papel de Dominique Jackson, tem um destaque especial.

Abril Zamora em “Vis A Vis”

Abril é uma roteirista e diretora espanhola com uma longa carreira no teatro, cinema e na televisão. Na série “Vis a Vis” ela interpreta a prisioneira Luna Garrido. Destaque ainda para a participação de Abril em “Rosa e Momo”, filme disponível no Brasil pela NetFlix, onde atua ao lado de Sophia Loren.

Lachlan Watson em “O Mundo Sombrio de Sabrina”

Na série Lachlan dá vida ao personagem Theo, um homem trans, já na vida real Lachlan se identifica como pessoa não-binária e usa as redes sociais para falar sobre seu processo de autoconhecimento e principalmente sua relação com seu corpo e a maquiagem.

Laverne Cox em “Orange is The New Black”

A personagem Sophia Burset interpretada pela atriz que também é produtora de televisão lhe rendeu duas indicações ao Emmy Awards como Melhor Atriz Convidada em Série de Comédia. A atriz participa ainda do importante documentário da Netflix “Revelação” (Disclosure, no título original), sobre representatividade de pessoas trans no cinema e do longa “Promising Young Woman”, forte candidato às premiações de 2021.

Ian Alexander em “The OA”

O ator, que tem pais religiosos e conservadores, enfrentou muitas barreiras quando expôs publicamente sua identidade. Na série “The OA” ele interpretou Buck Vu e em setembro de 2020 foi convidado para estrelar o primeiro personagem trans na saga “Star Trek: Discovery”.

Wallie Ruy em “Me Chama de Bruna”

Nascida no interior de São Paulo, Wallie atuou no Teatro Oficina e já deu aula nas áreas de teatro, TV e publicidade. Também participou do elenco das séries “Toda Forma de Amor”, “Ninguém tá Olhando”e a global “Carcereiros” e estrelou o curta-metragem premiado “Marie”.

Linn da Quebrada em “Segunda Chamada”

Linn está entre as artistas mais relevantes do cenário musical brasileiro atual. Na série original da Rede Globo ela dá vida a personagem Natasha, que encara as dificuldades de ser uma mulher trans em um ambiente escolar. Ela também protagonizou o documentário “Bixa Travesty” contando um pouco da sua história.

Marina Mathey em “3%”

Marina é uma multi-artista, cantora, compositora, produtora cultural e curadora. Na série ”3%” viveu a personagem Ariel, uma das responsáveis pela manifestação da sociedade contra as classes mais altas.

Jamie Clayton em “Sense 8”

Atriz e modelo norte-americana, na produção original da Netflix Jamie interpretou Nori uma hacker que se envolve com uma ativista dos direitos da população LGBT+.

Elliot Fletcher em “The Fosters”

Filho de dois dubladores famosos, o jovem ator interpreta na série Aaron, interesse romântico de uma das protagonistas. Ele também participou do elenco das produções “Shameless” e “Faking it”.

Brian Michael Smith em “9-1-1: Lone Star”

Conhecido por ser um grande ativista pela representatividade de pessoas trans na mídia, Brian já participou das séries “Queen Sugar”, “The L World: Generation Q” e agora estrela em “9-1-1: Lone Star” como o primeiro personagem fixo trans da saga.

Zion Moreno em “Gossip Girl”

Além de atuar na série infanto juvenil mexicana “Control Z”, Zion é modelo e foi escalada para participar do reboot da série sucesso nos anos 2000, “Gossip Girl”.

Glamour Garcia em “A Dona do Pedaço”

Antes do seu grande sucesso como Britney na novela “A Dona do Pedaço”, a atriz participou da série “Rua Augusta”, produção original da TNT e também de “Toda Forma de Amor”.

Hunter Schafer em “Euphoria”

Hunter fez sua estreia como atriz interpretando Jules no famoso seriado “Euphoria”. Um fenômeno nas redes sociais, ela também é modelo e já desfilou para grandes marcas como Versace, Miu Miu e Dior.

Alex Blue Davis em “Grey’s Anatomy”

Alex fez parte do elenco recorrente da série/novelão estadunidense entre 2017 e 2020. Na série, interpretava um dos internos de cirurgia do renomado hospital depois de passar alguns anos no exército. Além da série, o ator emprestou sua voz para um personagem especial do desenho “She-Ra e as Princesas do Poder”.

Camila Cerdeira, escritor não-binário: ‘Gosto de escrever pedaços da vida de uma pessoa’

Por Jessica Santos, para Ponte Jornalismo

No primeiro episódio da Academia de Letras das Ruas, live sobre literatura da Ponte, autor cearense fala sobre racismo, representatividade e sobre seus contos de fantasia

Depois de umas semanas em recesso, a Ponte voltou com força total com as lives temáticas. A primeira de 2021 foi o episódio 3 da Academia de Literatura das Ruas, que teve como convidado o autor Camila Cerdeira, que se define como “nerd por criação, negra, não binário e feminista”. O papo rolou nesta quara-feira (20/1) e pode ser visto na íntegra no YouTube da Ponte.

Cearense e morador de Fortaleza, capital do Estado, sua relação com as letras começou cedo. Antes mesmo de começar a ler, já tinha a tarefa de contar histórias ao irmão caçula. A dupla era incentivada pelos pais a ler desde muito novas e os livros foram parceiros de infância e adolescência.

Como boa parte dos jovens de sua geração, Camila descobriu a saga de Harry Potter aos 11 anos – mesma idade do protagonista no começo dos livros. Afirma que Hogwarts e o mundo encantado dos bruxos eram como seu lar. “Eu me encantei como aquele mundo bruxo, queria fazer parte daquelas aventuras”, conta.

No entanto, o encanto sofreu um forte abalo recentemente quand J.K. Rowling, autora dos livros, resolveu destilar transfobia, afastando uma considerável parcela de seu fã-clube, como é o caso de Camila. “Para mim, atingiu diretamente. Eu sou uma pessoa trans. Eu senti como se fosse minha mãe me atacando”, confessa. “Não estou consumindo. Não sei o que vou fazer com os livros que já tenho”.

A escrita

Autor de contos como “A noite cai” e “Guardião do Destino”, Camilla considera seu lançamento na literatura a partir das histórias fantásticas que contava para seu irmão dormir. No entanto, a primeira vez que, de fato, registrou histórias no papel foi aos 15 anos. “Tinha uma facilidade para escrever histórias curtas, elas me faziam sentido”, explica. Eram sempre contos que escrevia para si e para os amigos. “Gosto de escrever pedaços da vida de uma pessoa. É como se eu desse uma espiada e eu escrevo essa espiada. Para mim, o conto é isso”.

“Sempre fui uma pessoa que disse que não sei escrever fantasia”. Mas é exatamente desse gênero que saem as histórias de Camila com bruxas iorubás, anjos da guarda, lobisomens, invocações mágicas. No entanto, seus personagens humanos não são os clássicos brancos europeus de Tolkein, Lewis e Martin. Com histórias que se passam no Brasil, ela traz pessoas negras, de cabelos de todos os jeitos, de todas as orientações sexuais e em diversas situações onde o afeto – muitas vezes negado a essa população – é uma constante.

Com elementos do folclore brasileiro e da mitologia africana, “A noite cai” está disponível para leitura na Amazon. O conto traz aventuras fantásticas pelas ruas de Fortaleza, saindo do eixo Rio-São Paulo tão comum nas histórias nacionais. Da sua vivência em terreiros de umbanda, o escritor trouxe os orixás que dão energia a duas jovens bruxas. Das dezenas de versões sobre lobisomens, se inspirou para criar os antagonistas da história e assim foi surgindo o conto. “Ele é uma grande mistura de tudo que acabei consumindo”.

“Guardião do Destino” é fruto do desafio de criar histórias com protagonista LGBT+ imortal, lançado pela Editora Resistência. “Comecei a pensar nessa questão do que é um anjo, do que é uma alma e do que é a imortalidade”. A partir de então, desenvolve a história de Ariel, sua protegida e todas as vidas que eles já haviam vividos juntos. A história é parte da antologia “Não morre no final”, que também está disponível na Amazon.

Representatividade

Um termo que ama em voga em quase todas as artes é a representatividade, pouco colocado em prática nos grandes best-sellers. “Ainda não consegui me ver como pessoa negra, trans, não-binária, bissexual. Todos juntos, de uma vez, eu não consegui ver ainda”. Essas identidades estiveram esparsadas em suas experiências literárias. A primeira vez que se viu em uma história aconteceu durante a leitura de “O ódio que você semeia”, de Angie Thomas.

“Eu tinha 28 anos. Foi a primeira vez que eu me vi, de verdade. Que eu vi uma garota negra, que veio de um bairro parecido com o meu, que estudou num colégio particular com bolsa”, relata. “O príncipe e a costureira, HQ de Jen Wang, trouxe a representação não-binária. Mas ainda sobram lacunas de representatividade. “Até hoje, eu não li uma garota negra que gosta de garotas”.

A conversa pontuou a questão de lugar de fala na literatura, que ainda causa polêmica nesse meio. “Eu não sou contra pessoas brancas escreverem sobre protagonistas negros. Mas sou contra quando a pessoa se acha o porta-voz da negritude. Ela não fala por mim, ela não entende a minha vida”. Para Camilla, é preciso que a pessoa branca-cis-hetero não queira se alçar como porta-voz das minorias.  “Acho importante, essas pessoas escreverem personagens de minorias por uma questão de número. Pessoas brancas tem muito mais oportunidade para escrever do que pessoas negras. Se eu for esperar só os negros escreverem, a gente nunca vai se equiparar em quantidade”.

Durante uma hora, a conversa ainda passou por temas como racismo em fandons de literatura, os planos de Camilla para o futuro e suas indicações de leitura de jovens autores brasileiros.

Nosso papo com Diva Menner, a primeira participante trans a chegar às semi-finais do “The Voice Brasil”

Por Cyro Moaris, freelancer de conteúdo da Casa 1

Mulher trans, negra e periférica. Diva Menner enfrentou desafios até se tornar a primeira mulher trans a chegar às semifinais do “The Voice Brasil”. A pernambucana de 36 anos respondeu a perguntas enviadas pelo blog da Casa 1, falando um pouco de família, como foram os desafios para se firmar como artista, como foi a sua experiência no maior reality show de música do país e dos seus planos para o futuro.

Casa 1: Vamos começar falando um pouco de você como pessoa física e não a artista. Como foi sua criação, sua família, sua infância? 

Diva Menner: Minha família é minha mãe. Minha mãe que me criou, não tive pai. Ela que assumiu essa responsabilidade de ser meu pai e minha mãe. Maravilhosa. E tenho uma irmã cis, mulher cis, maravilhosa. Tive uma infância no final da década de 80 para o início da década de 90, então, foi uma infância muito “infantil”, por assim dizer, brincava muito. Tive a sorte de ter sido muito bem criada nesse sentido. Falando da minha transexualidade, eu sempre fui muito quietinha. Na época, ainda enquanto menino, eu já tinha os trejeitos femininos, inclusive, eu já era confundida em algumas situações com menina, coisa que me aborrecia muito na época. Aborrecia muito mais a minha mãe, na verdade. Eu tinha medo, às vezes, de sair na rua com minha mãe para não ser confundida com uma menina. Isso acontecia muito na infância. Na adolescência, os hormônios vieram aflorando, os hormônios masculinos da puberdade, aí eu fiquei mais masculino, mas enquanto isso não acontecia eu sofria um pouquinho por conta disso.

E quando a música apareceu na sua vida? Quando começou a cantar?

A arte sempre foi muito presente. Eu lembro que eu desde criança, eu já desenhava, pintava, dançava muito bem, cantava as músicas da minha época, né? A música foi surgindo aos pouquinhos. Eu nunca imaginei que algum dia fosse me transformar numa cantora de profissão. E quando isso aconteceu, eu agarrei com unhas e dentes e já faz 15 anos eu vivo inteiramente da música. Comecei a me profissionalizar aos 18 anos quando ingressei numa escola de canto popular e, logo depois, eu fui para Conservatório Pernambucano de Música, estudar Canto Lírico e fiquei durante sete anos. Foi muito bacana porque eu conheci uma galera muito bacana da música, consegui conhecer um pouco mais da minha voz e obter umas técnicas para conseguir cantar de tudo.

E como foi sua trajetória na música até chegar no “The Voice”?

Falar de trajetória, é complicado porque eu ainda não realizei todos os meus sonhos, só um pedacinho. De conseguir viver da música e ter participado do maior reality show do mundo, dentro do meu País. Reality show musical onde eu pude mostrar minha voz, meu talento pro Brasil inteiro. Era só um pouquinho de um sonho que ainda tava tão distante. E hoje foi realizado, mas é só o início. Eu sou muito realizada nessa minha trajetória de cantora porque eu consegui e consigo viver inteiramente da música num País totalmente preconceituoso, num estado…numa cidade que não tedá tanta oportunidade de ser diferente e viver da tua diferença, da tua musicalidade. Não tem muita oportunidade e eu consigo. Aos trancos e barrancos, a gente consegue pagar as nossas contas, os nossos boletos.

Qual a sua memória mais marcante com a música?

Eu nunca vou esquecer de um dia onde eu fiz uma performance da cantora Alcione, caracterizada, vestida de Alcione, e ela assistiu. Se levantou, foi até o cara do som pegou o microfone, subiu no palco comigo e a gente cantou. Foi uma surpresa maravilhosa e eu nunca vou esquecer.

E quais são suas referências? Tem algum(a) ídolo(a)?

As minhas referências vão desde o jazz, blues, rock ‘n roll, samba, bossa nova. Essas grandes vozes dessas cantoras pretas americanas. Cantoras da MPB também, como Elza Soares, Elis Regina, minha encantam, de verdade. Eu tenho total influência dessas divas.

Você tem o sonho de dividir o palco com alguma cantora ou cantor?

Eu tenho um sonho de cantar, sim. Queria cantar com Michael Jackson, queria cantar com Whitney Houston. Ai, como eu queria com Aretha Franklin, com Tim Maia, queria ter cantado com tanta gente. Quem está com a gente e eu gostaria muito de cantar é a Elza Soares.

E como foi a seleção para o “The Voice”?

Eu tenho a plena convicção de que a minha seleção para o The Voice Brasil foi muito mais rígida, muito mais criteriosa pelo simples fato de eu ser uma mulher trans do que qualquer outro participante do programa. Mas o tratamento foi muito legal. Eu tive um apoio muito grande de toda produção, todo mundo, e foi muito bacana.

Passou de primeira ou fez mais de uma tentativa?

Fiz muitas tentativas. Fui escolhida umas 3 vezes para fazer as seletivas regionais, que são testes que eles fazem por todo o Brasil. Em 2018, eu já estava ‘na agulha’ pra fazer o 2019, mas acabei entrando no 2020.

Por que escolheu o time Iza?

Escolhi a Iza porque eu acho que a gente tinha mais a ver naquele momento. Talvez, o Carlinhos Brown, talvez o Lulu Santos seria bom pra mim também. Mas, por ela ser igual a mim, uma mulher preta, eu acho que isso também contou muito para eu ter escolhido a Iza.

O que acha que sua participação como primeira mulher trans no “The Voice” pode representar para a população LGBTQIA+ e, principalmente, para as pessoas trans?

Eu digo que eu tenho um orgulho muito grande de ter sido a primeira mulher trans a participar do The Voice Brasil, a chegar nas semifinais, porque a gente vai abrindo portas para as próximas. É uma responsabilidade muito grande ter sido referência, inspiração para muitas outras que sonham em subir naquele palco e tem algum bloqueio, algum receio de subir naquele palco e não conseguir pelo simples fato de ser trans. Não, você é capaz. Eu acho que um sonho quanto mais impossível de sonhar, quando você decide realizar, quando o universo te abre as oportunidades é muito mais gostoso. Foi o que aconteceu comigo. A gente tá abrindo portas para as próximas. Não só no “The Voice”, mas em qualquer outro lugar no mundo. A gente é capaz.

E tocado nesse tópico, como foi o processo de transição pra você?

Foi processo de transição foi bem tranquilo. Foi anônimo, por conta própria, pesquisando. Eu comecei a definir o que já era, mais ou menos, moldado no meu corpo. Naturalmente, eu sempre fui bem feminina, bem andrógino, eu diria. E os hormônios vieram para definir mais, o meu rosto, o meu corpo, minha pele. Depois, eu fui procurar um endocrinologista e passei três anos fazendo transição e ainda continuo na transição. Sempre. Mulher trans está sempre em transformação porque o uso do hormônio é bem lento. Bem mais lento para uma mulher trans do que para um homem trans. Mas foi bem tranquilo. Claro que o uso excessivo dos hormônios causa muita coisa ruim para nossa saúde física e psicológica. Mas tudo por uma boa causa, que é a gente se sentir bem. Conseguir se olhar no espelho e conseguir corresponder àquilo que nossa alma já era.

O preconceito é uma realidade na vida da maioria das pessoas trans e negras, é também o seu caso?

Já sofri preconceito e sofro até hoje na verdade. Quando eu fiz a minha transição, quando eu deixei de ser menino para ter minha alma e meu adequados, eu perdi muitas pessoas, muitas amizades, que eu achava que eram amizades e não eram. Perdi algumas pessoas, perdi…e assim, dou graças a Deus por isso ter acontecido, tá? Enfim, há males que vem para o bem. Pra gente e para o nosso crescimento. Já sofri, sim, preconceito por ser periférica, as pessoas não dão muito valor. Passaram a
me dar valor agora por conta do programa The Voice Brasil. Isso é Pernambuco, é Recife, é Brasil. Porque não vamos ser hipócritas e esconder a realidade no nosso país, que é realmente o país que mais mata transexuais no mundo inteiro, é um país muito preconceituoso, né? Onde as pessoas só valem o que tem. Infelizmente, as pessoas olham uma mulher trans como um objeto de desejo proibido. Todos querem, mas ninguém tem coragem de abraçar, de dar uma oportunidade, de pegar
na mão e levar pro cinema, dar um beijo. Ninguém tem coragem de fazer isso com a gente. Só escondido. Então, a gente vê que é país da hipocrisia nesse sentido também. E olhe que eu nem tô falando de política.

O que diria para outras pessoas trans que podem estar sofrendo preconceito ou passando por dificuldades no processo de transição?

Então, tem um conselho que eu dou porque há muitas meninas trans que acabam se descobrindo ese assumindo pra família e pra si mesma muito jovens. E, justamente por serem tão jovens, elas, às vezes, se precipitam. E, lá na frente, eu conheço várias que se arrependeram e sofrem muito por querer voltar ao que eram. Então, eu diria “espera um pouquinho”. Espera ficar com uns 18 anos de idade pra você saber o que você quer da sua vida de verdade. Se você realmente é uma pessoa trans. Eu sei que a nossa alma, ela fala. Muito. Mas o arrependimento, ele vem quando a gente menos espera. Eu conheço tantas trans que hoje não querem mais se assumir trans. E não são mais, elas se enganaram. Elas viveram aquele momento, mas não são mais. No meu caso, eu me descobri trans desde sempre, mas eu só quis assumir a minha identidade feminina depois dos 30 anos de idade, 34, 33, por aí… Hoje, eu tenho plena consciência do que é ser uma mulher trans e não quero voltar atrás.

E para finalizar, aquela pergunta clássica: quais os seus planos de futuro?

Esse ano vou lançar a minha música autoral, um clipe bem bacana. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos. Eu tô muito feliz.

[Artigo] Retrospectiva: como anda a educação em direitos humanos no Brasil?

Por Talitha Paratela[1], mestre em Linguística Aplicada, com foco em Educação e Linguagem, pela Unicamp e bacharela em Letras pela USP. É voluntária da Casa 1.

Não é incomum ouvir uma parte da população dizer que os direitos humanos são “privilégios de bandidos”. O contexto da formação de direitos no Brasil, que aconteceu na redemocratização do país depois de mais de duas décadas de regime militar, influenciou a associação entre direitos humanos e cárcere no imaginário popular, especialmente em São Paulo, que teve altos índices de criminalidade entre 1983 e 1985 (CALDEIRA, 1991), mesmo período em que os movimentos sociais estiveram à frente da conquista de direitos básicos, muitos deles também direitos humanos, como acesso à educação, saúde e moradia. Para muitas pessoas, os direitos humanos se restringiam ao direito ao acesso à justiça. No entanto, visam a mais do que isso, sendo norteadores das relações humanas e da dignidade em sentidos amplos. A opinião pública distorce, então, qual é a importância dos direitos humanos e em quais áreas da vida social incidem, concentrando-se em poucos parágrafos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU).

No Brasil, a criação de leis e normas educacionais que abarcam os direitos humanos na educação começou há quase duas décadas e meia. Com isso, debates como o direito à livre expressão de gêneros, raças-etnias, orientações sexuais e religiões ganharam mais espaço nas salas de aula, o que gerou a resistência de grupos políticos conservadores. Um dos movimentos que se posicionam contra as teorias sobre as quais são construídas os atuais conteúdos curriculares é a Escola sem Partido. Suas ideias se tornaram um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e ameaçam um ensino, de fato, voltado para os direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, é assinada por países do mundo inteiro – inclusive, o Brasil – e estabelece regras que privilegiam a dignidade em múltiplos aspectos da vida social, a igualdade de direitos, o progresso e as condições de vida adequadas. Seus parágrafos defendem o direito à igualdade, à liberdade (de raças, orientações sexuais, culturas, religiões, opiniões políticas etc.), à vida, à segurança pessoal, ao trabalho digno, ao fim das torturas, à livre circulação, à migração, à propriedade e à liberdade de pensamento, entre outros direitos. O respeito aos direitos humanos deve ser transmitido às diferentes gerações por meio da educação, conforme dispõe o preâmbulo.

O início da implementação dos direitos humanos na educação brasileira foi no fim dos anos 90, com os Parâmetros Nacionais Curriculares. No documento, que contém diretrizes educacionais instituídas pelo Ministério da Educação, em 1997, propõe-se o amplo entendimento dos direitos e deveres nas relações sociais por meio da inclusão dos temas transversais na grade curricular, cujo foco é a ética, a pluralidade cultural, o meio ambiente, a saúde e a sexualidade. Esses temas não devem ser abordados em disciplinas criadas especialmente para debatê-los, e sim ser integrados às disciplinas já oferecidas, como língua portuguesa, matemática e ciências biológicas e naturais. 

Os temas transversais se subdividem em eixos. O estudo da ética nas relações humanas abrange o respeito mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade. A pluralidade cultural diz respeito à diferenciação dos grupos sociais, em especial, dos migrantes. O meio ambiente transforma o debate sobre a natureza em humano, tirando-o de suas dimensões física e biológica. A saúde prioriza o conhecimento sobre o corpo, o autocuidado, o cuidado com as pessoas que nos cercam e o cuidado como dever do Estado. A orientação sexual concerne à educação sexual e às relações de gênero. Cada um desses temas deve atender às urgências nacionais e locais, sendo competência, também, dos estados e municípios a determinação de medidas educativas que privilegiem as características e necessidades regionais.

Eles se ancoram na interdisciplinaridade, que permite o estabelecimento de relações entre os campos do saber, integrando-os, já que os mesmos objetos de estudo podem ser observados através de várias perspectivas. Além da interdisciplinaridade, baseiam-se na transversalidade, que proporciona uma estreita relação entre os saberes e a vida social e atribui aos sujeitos a produção do conhecimento. Com isso, amplia-se o debate sobre os valores e as normas, em consideração às diferenças e aos vários sistemas normativos. Esse tipo de ensino estimula a aprendizagem e o respeito aos direitos básicos, atendendo aos artigos 1º e 3º da Constituição de 1988 ao incluir seus princípios nos conteúdos ministrados nas escolas (MEC, 1997).

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; […]

V – o pluralismo político.

[…]

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).

A transversalidade na educação surge sob a influência da consolidação de um Estado democrático de direito, cujo documento mais importante, o da Constituição Federal, busca proporcionar aos brasileiros e às brasileiras uma vida e um trabalho dignos, liberdade para se posicionar politicamente, justiça, solidariedade e o fim das desigualdades e discriminações, como pode ser observado nos excertos anteriores, extraídos dos artigos 1º e 3º. Embora a Constituição tenha tal finalidade, desde 1988, questões como essas, que são centrais na democracia, continuam a ser grandes desafios.

A falta de dignidade, a censura e retaliação política, as injustiças sociais, o preconceito e a apatia dos governos e das elites diante das mazelas da sociedade perpetuam depois de mais de cinco séculos de colonização e, mais recentemente, de uma ditadura militar. A opressão está nas raízes do Brasil. Em vista da história, os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem uma educação baseada na Constituição de 1988, que ser deve orientada à dignidade, ao reconhecimento da diversidade, à igualdade de direitos, à participação popular e à corresponsabilidade da população e do Estado de manter os princípios da democracia como elementos basilares da vida social (MEC, 1997).

A educação em direitos humanos começou a ser delineada através do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, cuja versão final é de 2006. Esse documento tem abrangência em diferentes níveis de ensino: educação básica, educação superior, educação não formal, educação de juristas e profissionais de segurança pública, e educação e mídias. Entre os seus objetivos, estão o fortalecimento do Estado democrático de direito, a constituição de uma sociedade ancorada na justiça, igualdade e democracia, o cumprimento dos compromissos firmados pelo Brasil com outros países, a transversalidade da educação em direitos humanos nas políticas públicas e a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos, mais conhecido pela sigla PNDH, iniciado em 1996 (BRASIL, 2006, pp. 26-27).

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos norteia as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, de 2012, que surgem para incorporar à educação uma das garantias constitucionais do artigo 4º, a prevalência das regras e dos princípios estabelecidos internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. As diretrizes asseguram que, desde o ensino básico, os assuntos relativos aos direitos humanos sejam discutidos nas salas de aula, proporcionando a discussão sobre direitos humanos nas instituições educacionais e implicando a responsabilidade dos sujeitos com os outros. A dignidade humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento da diversidade, o Estado laico, a sustentabilidade socioambiental e a defesa da democracia também são centrais no documento de 2012.

Tais leis educacionais de direitos humanos são amparadas e estimuladas pela ONU e por seus tratados internacionais, conforme estipula a própria declaração e a Convenção de Paris de 1960. Na educação brasileira, sua implementação traz uma série de mudanças, como a inclusão das noções dos direitos humanos em projetos políticos-pedagógicos, regimentos escolares, planos institucionais de desenvolvimento, grades letivas das instituições de ensino superior, materiais didáticos e paradidáticos, modelos de ensino e pesquisa, gestão escolar e processos de avaliação (BRASIL, 2012). 

As políticas públicas educacionais de direitos humanos em vigência no país são minadas por projetos populares como a Escola sem Partido, que se inspira em uma organização dos Estados Unidos denominada No Indoctrination. Conservadores, esses movimentos têm ganhado força nos últimos anos, propagando a ideia de que existe uma “doutrinação” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d) nas escolas. Eles transformam o discurso sobre liberdade e multiplicidade de perspectivas no ensino em um manifesto em favor do fim das discussões promovidas pelos programas de educação em direitos humanos.

Numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d).

Nessa visão, embora as escolas devam se abrir a múltiplas visões, elas precisam propor uma reflexão neutra e equilibrada. Porém, a realidade não pode ser refletida, já que, nós somos sujeitos – singulares, cada qual com a sua trajetória de vida e seu próprio modo de interpretar o mundo –, e não um espelho. Sendo assim, um discurso que se diz neutro nunca é um discurso, de fato, neutro. Não existem discursos neutros, pois todos são produzidos por sujeitos. Ao incentivar a censura a educadores e gestores escolares e a repressão a grupos políticos estudantis, a Escola sem Partido é contrária a diversas liberdades garantidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, confrontando-a e, assim, posicionando-se contra as igualdades de direitos e a dignidade humana. 

O movimento põe na conta de grupos políticos que qualifica como hegemônicos uma suposta falta de diversidade de ideias nas salas de aula, já que haveria uma imposição de certas “correntes políticas e ideológicas” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d), apesar de os programas de educação em direitos humanos terem sido elaborados em governos de partidos diferentes, considerados como oposição um do outro. Os temas transversais e as primeiras modificações das normas de educação brasileiras em prol da diversidade e dignidade humana foram feitos no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nos anos 1990, e a continuidade dessas políticas de educação ocorreu em governos posteriores, no de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nos anos 2000, e no de Dilma Rousseff (PT), nos anos 2010. 

As pautas defendidas pela Escola sem Partido se tornaram o projeto de lei nº 246/2019, que tramita no Congresso Nacional, sendo de autoria de deputados do PSL, Novo, DEM e Pode. Entre os principais artigos, está a proposta de acabar com a obrigatoriedade de ensinar religião e princípios morais nas escolas e transferir a responsabilidade e autonomia de ensino para tutores e responsáveis por crianças e adolescentes. Ou seja, defende-se uma troca de instituições em pontos basilares da educação em direitos humanos, que passa da esfera da escola para a família, o que causa o enfraquecimento das políticas de educação, que, atualmente, incorporam os direitos humanos em diretrizes, planos pedagógicos e produções didáticas e paradidáticas – sem contar o fato de que os direitos humanos são fundamentados por estudiosos de diversos campos do saber, como as ciências sociais, o direito e as relações internacionais, e não são especialidade das famílias.

Outro destaque é o artigo 2º do projeto de lei, em que se afirma que “o Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero” (BRASIL, 2019). Se o Estado, por meio de suas instituições, como a escola, não intervir na educação sexual de jovens, quem o fará? A família? Essa é uma proposta problemática porque mais de 70% dos casos de abuso sexual acontece na casa da própria vítima, sendo que 40% deles são cometidos pelo pai ou padrasto, segundo um balanço de 2020 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

É dever do Estado brasileiro, que assinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e precisa ratificá-los por meio da criação de leis – como o fez na educação –, inibir o abuso sexual por meio de uma educação sexual efetiva nas escolas. Também não se sabe o que os autores do projeto de lei entendem como uma abordagem dogmática ou proselitista de gênero. A desigualdade de direitos entre os gêneros não é (nem deveria ser) uma questão de um só partido ou uma só vertente política, e sim de todas as pessoas do poder público que nos representam politicamente. Não somente o gênero como também todos os direitos universais devem ser de interesse dos governos, prezando efetivamente pelos princípios da declaração.

O artigo 7º do projeto de lei da Escola sem Partido assegura aos alunos e às alunas o direito de gravar seus professores e professoras, a fim de proporcionar a seus responsáveis terem “ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola” (BRASIL, 2019). Com isso, a perda de autonomia profissional e a vigilância dos profissionais de educação seria liberada por lei, ferindo a Constituição de 1988, que garante, pelos incisos II e III do artigo 206, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 1988) e o “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (BRASIL, 1988).

A Escola sem Partido, além de defender uma falsa neutralidade do ensino, mascara-se como um projeto que defende o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 2019) e a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 2019) – como se estivesse em consonância com a Constituição Federal –, mas promove uma guerra ideológica contra esse pluralismo e essa liberdade que fingem defender ao polarizar docentes e estudantes, eximir as escolas da educação moral, religiosa e sexual, coibir o debate de ideias, estimular o envolvimento da família em temas que deveriam ser de caráter escolar, proibir a manifestação política de estudantes e adotar uma política de vigilância, submetendo a educação a uma patrulha ideológica.

A aprovação da Escola sem Partido seria um retrocesso sem tamanho para o Brasil. As políticas educacionais de direitos humanos levaram muitos anos para serem estabelecidas nas instituições de ensino, considerando que ainda há melhorias a fazer. A aprovação desse projeto de lei seria um obstáculo à continuidade da educação para a diversidade, minando discussões nas quais a ordem e o status quo são questionados, e à própria democracia, violando pontos da Constituição e confrontando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora se afirme o contrário. Além disso, comprometeria a transmissão dos princípios da dignidade humana através das gerações. O discurso falsamente neutro do movimento Escola sem Partido é, então, um discurso conservador contra o pensamento crítico.

A ideia de um ensino livre de “doutrinação” é de interesse do atual governo, cujo representante máximo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, elegeu-se por sua campanha favorável ao preconceito contra o público LGBT[2] e ao autoritarismo da ditadura militar[3], sendo contrária à expressão de gêneros, orientações sexuais, raças-etnias e religiões que desviem do padrão cisgênero, heterossexual, branco e cristão – e se enquadrem na chamada “ideologia de gênero”. A “ideologia de gênero” é parte da agenda de partidos e movimentos políticos, como a Escola sem Partido.

Os pesquisadores Miskolci e Campana (2017) atribuem uma das origens da expressão “ideologia de gênero” à igreja católica. Segundo eles, as reações dos líderes católicos às políticas reprodutivas e sexuais e sua adesão ao argumento biológico[4] sobre os sexos foram centrais no papado de Bento XVI, quando a “ideologia de gênero” foi mencionada no Documento de Aparecida, de 2007. Na seção no 40, define-se “ideologia de gênero” como um conjunto de comportamentos que ferem os dogmas religiosos, relacionados, principalmente, às questões de sexualidade e gênero.

Com o tempo, a noção de “ideologia de gênero” deixou de se restringir à igreja católica e foi adotada por outras vertentes religiosas – como a evangélica –, pelo poder público e pela sociedade civil organizada. Graças a ela, busca-se espalhar um pânico social por meio de ações políticas, jurídicas e midiáticas que pressionam pelo veto às leis e medidas reprodutivas e sexuais (MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Nessa onda, surfa a Escola sem Partido, que se posiciona de modo conservador contra os direitos humanos no campo educacional, apesar de se considerar neutra – o que não é, pois, como vimos, os discursos sobre “ideologia de gênero” não surgem do nada: formam-se em vários campos do saber, entre eles, a religião.

O que se espera, então, é tirar a educação em direitos humanos de cena e implementar um novo tipo de educação – retomada das épocas de autoritarismo da ditadura –, que sofrerá com a censura de temas sociais e políticos na grade curricular, nos planos pedagógicos e nos materiais didáticos e paradidáticos. Para os grupos conservadores, a educação em direitos humanos é de interesse de uma corrente política ameaçadora que supostamente tomou conta do Brasil. Os discursos desses grupos são contraditórios por defenderem leis, técnicas e procedimentos retrógrados para a educação, mas, ao mesmo tempo, o pluralismo de pensamentos e o embasamento científico.

O verniz do livre pensamento de projetos como a Escola sem Partido visa esconder as desigualdades, a discriminação e o preconceito e é um perigo para a democracia de um país, que, depois de mais de três décadas, continua à prova. Por isso, é imprescindível que os direitos humanos sejam, de fato, conhecidos e entendidos como princípios em prol da dignidade humana, os quais abrangem inúmeros aspectos da vida (social, econômico, ambiental etc.) e valorizam todos os seres. Eles se ancoram nos valores democráticos e são a base do combate ao autoritarismo que ronda de tempos em tempos.

Notas

[1] Gostaria de agradecer à Roberta Cerqueira Borges pela revisão e pelas inúmeras contribuições a este texto.

[2] Esta reportagem da Agência Pública mostra como as eleições presidenciais de 2018 foram influenciadas por disparos massivos de mensagens em redes sociais, como o WhatsApp. Merecem destaque o boato sobre o “kit gay” e a onda de preconceitos contra o público LGBT que gerou na internet.

[3] De acordo com a Agência Lupa, em 1999, Bolsonaro deu uma entrevista à TV Bandeirantes, na qual afirmava ser a favor da tortura e do fechamento do Congresso Nacional, heranças da ditadura. Já eleito presidente, em 2019, declarou que o coronel Brilhante Ustra, condenado por ter cometido crimes de tortura e ocultação de cadáveres no regime militar, é um “herói nacional”.

[4] Esse argumento sobre os sexos, vistos de forma binária (homem-mulher), volta-se para o determinismo biológico, em que as atribuições sociais dos homens e das mulheres dependem exclusivamente das características de seu corpo. Sendo assim, opõe-se a várias teorias de gênero, nas quais os gêneros são construções sociais mutáveis e seus significados dependem do contexto sócio-histórico em que inserem.

Referências bibliográficas

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Caren: “A feminilidade não foi feita para mulheres lésbicas, mas, principalmente, não foi feita para mulheres negras.”

Natural de Sete Lagoas (MG) vivendo em Niterói (RJ), Caren Lopes, médica veterinária residente na Universidade Federal Fluminense, compartilha nas redes sociais seu cotidiano no meio acadêmico e no mercado de trabalho e as dificuldades no enfrentamento ao racismo e à lesbofobia nesses espaços.

Como o racismo se manifesta na comunidade LGBT, especialmente entre mulheres lésbicas?

[O racismo se manifesta] em várias esferas. Como me descobri lésbica na universidade, eu já participava dos movimentos sociais, do movimento feminista e do movimento negro, já tinha uma visão um pouco mais crítica disso. Eram questões que eu já entendia e ao mesmo tempo não entendia completamente. Eu sentia que queria fazer parte de um grupo e, principalmente, parte de um grupo sendo mulher lésbica, me entender naquele ambiente, com mulheres parecidas comigo. E por um tempo eu achei que não existiam mulheres negras e lésbicas. É muito esquisito.

Penso nisso até hoje quando falo sobre ser veterinária negra e lésbica. Tenho grupos profissionais e faço parte de um grupo de veterinários LGBTs e de um grupo só de veterinários negros. Eu sou no grupo de veterinários negros, a lésbica e, no grupo de veterinários LGBT, a negra. Desde a universidade eu já tinha essa percepção crítica e percebia que quando a gente fala “vou estar em uma festa LGBT” ou “em um evento LGBT”, o que vem à mente são homens brancos e, quando é um evento de mulheres, é só mulheres lésbicas brancas. Tem sempre essa sensação de não pertencimento. Não me sinto cabendo nesses espaços, mesmo quando se fala que é um espaço de representatividade. Quase sempre colocam uma mulher negra lésbica e só. Isso quando tem, raramente tem. E dentro da comunidade LGBT+ eu nem me vejo mais dentro dessa discussão. É muito frequente não me enxergar nessas discussões.

No dia 20 de novembro, ocorreu aquele caso no Carrefour [João Alberto, um homem negro foi assassinado por dois seguranças terceirizados da rede de supermercado] e essas questões me abalam muito. E vejo que é pouco discutido por pessoas brancas no meio LGBT+. A comunidade LGBT+ branca literalmente ignora as questões de pessoas negras. Ignora que a nossa vivência é válida e que existem questões que são únicas da nossa experiência, que precisam ser tratadas de forma séria. As pessoas são descaradamente racistas e, muitas das vezes, elas têm orgulho disso. Essas pessoas acham que o que elas vivem, ou as experiências que elas vivem, são o máximo da opressão. Para elas não existe uma opressão maior que a homofobia ou que a lesbofobia. Já ouvi várias mulheres lésbicas inclusive afirmando isso, como se o racismo não fosse nada, ignorando a existência do racismo. Gostaria que a gente pudesse ter um diálogo tranquilo, que as pessoas minimamente se preocupassem, mas, o que eu vejo, é um descaso e que é deixado de lado, exceto quando isso é bonito nas redes socias, onde você vai pagar de desconstruído e vão curtir seu post. Dura dois dias e daí para frente ninguém se importa mais.

Ser uma mulher negra e lésbica afeta seu trabalho como uma produtora de conteúdo?

Afeta muito, principalmente na parte emocional. Quando eu comecei a ganhar mais seguidores não era uma coisa que eu queria. Ter muito seguidor, ser uma grande produtora de conteúdo (ri). Foi realmente uma necessidade de falar sobre isso porque sempre participei de movimentos sociais, sempre me engajei muito nessas questões e via muito pouco sendo falado. Gosto muito da internet, gosto de me comunicar, gosto de ver outras pessoas falando sobre as coisas e queria muito falar sobre ser lésbica e negra no mercado de trabalho.

Eu não via se alguém falava sobre isso ou pouquíssimo se falava sobre, só que é muito difícil de crescer, para além dos números. Uso muito o Instagram e lá você tem que produzir o tempo inteiro, se você não tiver produzindo o tempo inteiro não te dão visibilidade, não chega [a publicação nos seguidores] e se não tiver alguém te ajudando é muito difícil.

E é um trabalho. As pessoas não têm noção do quanto é trabalhoso e você não é remunerado. Quem recebe “publi”, auxílio para fazer alguma publicação paga, na maioria das vezes são pessoas brancas. E dentro da comunidade lésbica são mulheres lésbicas brancas e é chocante. Quando comecei a querer publicar coisas eu via perfil de pessoas que, literalmente, postavam só o rosto. É absurdo. E tinham muitos seguidores, muita “publi” e com certeza devem ganhar dinheiro só fazendo isso, só mostrando a cara, não falam de assunto nenhum. Não discutem nem sobre ser lésbica como se fosse algo relevante, às vezes nem isso, só postando foto do rosto. Isso desanima muito porque não acho que vou ser chamada para uma “publi” tão cedo, acho que vou sempre ficar me desgastando.

E eu gosto de publicar, realmente gosto, mas tem momentos que chegam a ser um desgaste emocional também. Gente questionando o que você faz acontece com frequência. Quando comecei a postar sobre ser lésbica dentro da medicina veterinária, que é minha área, muita gente apareceu me perseguindo. No começo, foi muito complicado e depois, de novo, falando sobre negritude dentro da minha área. Muita gente falando que era um absurdo, que achava violento falar sobre ser negro, que era bobagem e que ninguém precisava saber disso. Vários desestímulos, coisas que gosto de fazer que ficam desestimulantes, que me deixam para baixo porque além de ser uma energia muito grande que eu gasto, não tenho tanta visibilidade e ainda não tenho ajuda. Ainda por cima existe essa questão de pessoas que são violentas. Internet é esse mundo. Às vezes eu tento me afastar um pouco. Nem sempre eu consigo ficar [conectada].

Apesar de não serem dados oficiais, o dossiê do lesbocídio indica que mulheres lésbicas e negras estão mais propensas a cometer suicídio. Você avalia isso como uma marginalização de mulheres lésbicas na sigla, somada com a falta de cuidado médico e social com a saúde mental de mulheres negras na sociedade?

Sim, com certeza, totalmente interligado. Primeiro que existe só um dossiê no Brasil sobre lesbocídio, é o único que a gente tem. Tentei ler e tirar alguma informação dele, mas ainda assim é um dossiê muito falho. Só é contabilizado [o crime de violência] que foi publicado em jornais e redes sociais. Uma questão é a invisibilidade total de mulheres lésbicas, e essa invisibilidade está refletida também no lesbocídio, na morte de mulheres lésbicas. Então, muitas vezes não se sabe que uma mulher foi morta por lesbocídio, não se sabe que esse é o motivo e várias outras questões. Essas mulheres são mortas e não se sabe nada sobre a existência delas. Bate no racismo e bate na lesbofobia.

Vejo muitas questões quando a gente fala sobre ser lésbica e negra performando ou não performando feminilidade. Tem se discutido muito sobre isso. E lembro que quando comecei a pesquisar sobre ser lésbica, – é doido quando a gente vai se descobrindo, eu colocava no Google, precisava saber mais sobre isso e primeiro não achava pessoas parecidas comigo e quando eu achava, eram extremamente padronizadas.

Eu comecei a tentar entender o que era ser lésbica muito dentro do que é o estereótipo do que é ser lésbica, do estereótipo que fazem das vivências de mulheres lésbicas que não performam feminilidade. Tinha muita curiosidade para saber sobre isso e achei algumas youtubers que falavam sobre, mas nunca achei mulheres que falavam sobre vivências de mulheres lésbicas que performam feminilidade e questionando isso e tentando entender a vivência de uma mulher lésbica feminina e como isso leva à questões psicossociais e, quando comecei a ler o dossiê, me veio essa informação. Já sabia que tinha essa questão de mulheres lésbicas negras [que não performam feminilidade] e o assassinato pelas questões de estereótipo e pelo racismo. Mas [sobre o que] mulheres feminilizadas sofriam pela questão psicossocial e sofriam sendo “suicidadas”, que é o que diz o dossiê: mulheres suicidadas. Mexeu muito comigo.

A sociedade é extremamente lesbofóbica, e é extremamente racista mas, em relação à lesbofobia, é tão extremamente lesbofóbica, e é tão inaceitável a nossa existência na sociedade, que quando você não performa feminilidade, você é chamada de homem, você quer parecer um homem, você não é mulher o bastante, e quando você é feminilizada, uma mulher que de alguma forma encaixa nesse padrão do que é a feminilidade na sociedade, você também não é lésbica. Ou você é homem ou você não é lésbica. Não existe lésbica nesse mundo. Não existem mulheres que se relacionam com mulheres. Mulheres não foram feitas para isso, foram feitas para homens.

É muito pouco discutido o quanto essa pressão psicológica afeta as nossas vidas e o quanto isso pode nos levar a serem suicidadas, o quanto isso acaba com a nossa autoestima. Muitas mulheres são empurradas para a heterossexualidade compulsória porque não parecem lésbicas. Para você ser lésbica tem que ser assim ou tem que ser assado e se você não é assim deveria se relacionar com homem. E isso a gente sabe que faz mal, é extremamente danoso para o nosso psicológico e leva sim para o suicídio. A gente não faz nem ideia do quanto isso atinge a comunidade lésbica.

Venho conversado muito com amigas, durante agosto, mês da visibilidade lésbica, fizemos um grupo com mulheres lésbicas e negras e foi uma experiência maravilhosa. A gente tem conversado muito sobre essa questão de feminilidade e não feminilidade e o quanto esses padrões, esses estereótipos de gênero, são extremamente eurocentrados e como eles não cabem em mulheres negras.

Tem se discutido muito sobre o termo “caminhão”, sobre como ele foi pejorativo no começo e como ele tem sido abraçado pela comunidade lésbica. Agora várias mulheres brancas estão querendo quebrar com esse padrão do que é ser feminina e do que não é, e como isso é tão mais fácil para elas. Elas raspam a cabeça e pronto, agora não são mais femininas, agora são “caminhão”. E esse histórico do que significa ser “caminhão”, historicamente vem com o peso da violência lesbofóbica e racista. A feminilidade não foi feita para mulheres lésbicas, mas, principalmente, não foi feita para mulheres negras. É como se fosse inaceitável para a sociedade que mulheres negras sejam femininas, por que o que é ser feminina, né? O nosso cabelo não está dentro desse padrão, a nossa pele não está dentro desse padrão de feminilidade, a que existe na nossa sociedade. Isso não foi feito para caber na gente.

O que pode ser feito em espaços voltados para comunidade LGBT não reproduzirem racismo?

É uma questão profunda. O primeiro passo é ter o mínimo de empatia. Existem pessoas que parecem não ter empatia, não demonstram o mínimo interesse pelo assunto. Ter interesse é ler mesmo, ouvir o que as pessoas, principalmente o que mulheres lésbicas e negras, estão falando nas redes sociais. Já tem tempo [que mulheres negras e lésbicas estão falando sobre racismo e lesbofobia], não é de agora.

Leci Brandão já falava sobre isso, Audre Lorde falava sobre isso. Vai atrás não só das mulheres negras de agora, mas do histórico. Será que você sabe a história, o caminho que a gente teve que fazer para chegar aqui? Mas ouça também as mulheres lésbicas que estão falando sobre isso agora e busque se silenciar um pouco. As pessoas não conseguem ficar quietas, ficar em silêncio e pensar “não é minha hora de falar, é minha hora de ouvir”. Ouça e tente no mínimo, no seu meio, – que na maioria das vezes é formado só por pessoas brancas-, discutir isso e não se silenciar nesses momentos. Existem várias pessoas brancas que na hora que está acontecendo um episódio de racismo na frente dela, a pessoa se silencia, no momento que é para fazer alguma coisa, fica quieto. É importante agir de forma verdadeiramente antirracista. Fora isso, eu recomento muito a Audre Lorde. Ler Audre Lorde é revolucionário, eu sou muito fã.